sexta-feira, 13 de agosto de 2010

O leopardismo do Governo Lula: “Mudar tudo” para que tudo continue como está


O leopardismo do Governo Lula: “Mudar tudo” para que tudo continue como está

A “aprovação política” do governo Lula, registrada nas enquetes, é um fenômeno fugaz, muito semelhante à aprovação de FHC em 1998. Como naquela conjuntura, estamos em um ano de eleições presidenciais no meio de uma crise internacional do capitalismo em que seus efeitos mais nefastos ainda não apareceram no Brasil; mas certamente virão a tona. Apesar das condições favoráveis para os países dependentes entre 2003-2007 (quando houve um soluço de crescimento planetário, com aumento dos preços dos bens primários), houve uma paradoxal melhora conjuntural acompanhada de piora da vulnerabilidade externa comparada do Brasil. A política do governo Lula é a repetição da velha política de reprodução “reciclada” do capitalismo monopolista dependente, de sua ordem social autocrática com um Estado a serviço do bloco de poder formado pelo imperialismo, os monopólios e o latifúndio; hegemonizado pelo capital financeiro que constitui o amalgama da fusão orgânica ou da associação (nos seus interesses, negócios e empresas) entre estas frações da grande burguesia. O governo Lula manteve a mesma política econômica do segundo governo FHC: explosão da relação dívida interna/PIB por causa da troca de dívida externa, de maior prazo e menos juro, por dívida interna, de prazo menor e taxas de juro mais elevada; câmbio flutuante; ajuste fiscal permanente e megas-superávits primários; juros astronômicos; queda dos salários reais nivelados por baixo; precarização do trabalho e retirada de direitos.
O próprio crescimento econômico tem que ser pensado em termos qualitativos: que tipo de crescimento e com que finalidade? O crescimento alcançado no governo Lula não corresponde a melhorias significativas das condições de vida do povo brasileiro; não avança no sentido da superação da dependência do Brasil ao imperialismo e reforça a cultura da desigualdade dominante. Forja-se uma identidade ilusória das classes trabalhadoras com o presidente que não corresponde à realização no âmbito das políticas econômico-sociais do seu governo. Sem dúvida, em um país como o Brasil, a eliminação da fome, da miséria e do desemprego deve ser considerada uma prioridade máxima na alocação dos recursos escassos do Estado. É neste sentido que Luiz Carlos Prestes formulou em 1982 uma Proposta para a Discussão de um Programa de Soluções de Emergência Contra a Fome, a Carestia e o Desemprego (Prestes Hoje, Codecri, R.J., 1983, pp. 77-95). A proposta de Prestes, é abrangente e eficiente, articula as medidas de emergência para o atendimento das necessidades imediatas das massas pobres com políticas de elevação do nível de vida do proletariado, com a ampliação de direitos e garantias sociais universalizantes e volta-se para a eliminação das causas estruturais da fome, da miséria e do desemprego. Seu método liga medidas transitórias com uma estratégia socialista: ao buscar colocar as necessidades dos de baixo no centro da luta política, incorporá-los como força organizada na luta de classes e fortalecer a hegemonia do proletariado no interior do bloco de forças sociais revolucionárias. Proporciona condições políticas para uma interação entre a massa menos politizada e os revolucionários organizados com formação marxista; visa criar espaços para o surgimento de novas lideranças diretamente escolhidas pelas massas, formar quadros proletários na luta que faz a mediação entre o programa revolucionário e as preocupações imediatas das massas. Assim concebidas, “as soluções de emergência contribuem para conscientizar e organizar as classes trabalhadoras, preparando, desta maneira, as condições necessárias para mudanças substantivas nas estruturas capitalistas e autoritárias, num sentido socialista” (Prestes, L. C. – “Proposta Para a Discussão de um Programa de Emergência..., op. cit., p. 81).
O Programa Fome Zero original era avançado e criaria uma dinâmica social progressista; no entanto foi abandonado e substituído por um programa rebaixado, adaptado ao viés das “políticas compensatórias” do FMI e BM (o que levou Frei Beto, um dos formuladores do Fome Zero, a romper com o governo). O conteúdo da política social do governo Lula é, no essencial, a mesma política regressiva do governo FHC. Ambos aplicaram a política neoconservadora do Banco Mundial de substituir os direitos sociais universais (emprego, saúde, educação, moradia, transporte, etc.) conquistados pelos trabalhadores no século XX como “direito de todos e deve do Estado” pela lógica perversa das “políticas focalizadas” (para “os mais indigentes entre os miseráveis”). A política social do governo Lula combina a “flexibilização” e precarização do trabalho (que retira direito dos trabalhadores) com políticas “focalizadas” para acalmar e cooptar os miseráveis, com uma “compensação” (limitada e barata) diante dos efeitos da política econômica que reproduz o capitalismo dependente: baixo crescimento, pauperização, elevadas taxas de desemprego, diminuição dos salários e rendimentos populares. O programa Bolsa Família, peça central da política social do atual governo, não pode sequer ser considerado como de renda mínima, pois, além de não ser universal, também não é constitucional e nem seu valor atende as necessidades mínimas reais de sobrevivência das pessoas. O salário mínimo necessário do DIEESE (definido para uma família de dois adultos e duas crianças) daria uma renda mínima per capita quase quatro vezes maior que o valor definido como linha de pobreza pelo “Bolsa Família”. O Programa serve, no entanto, como poderosa arma político-eleitoral e eficiente instrumento de manipulação ideológica. Permite um discurso “politicamente correto” na perspectiva do grande capital, que forja uma falsa consciência do que seria um “bom” governo para os trabalhadores.
Este processo político apresenta características novas, em especial o “transformismo” do governo Lula e do PT, que propagandeando a mudança fortaleceram a continuidade e a manutenção da ordem herdada: uma reciclagem da velha autocracia burguesa, onde até as ilegalidades da ditadura militar são preservadas (como a lei da anistia que protege os torturadores e mantém secretos os arquivos da ditadura). O “transformismo” é um conceito de Gramsci que trata da adesão (individual ou coletiva) ao bloco dominante de lideranças e organizações políticas ligadas às “classes subalternas”, com o abandono de suas antigas posições políticas. O rápido e amplo “transformismo” de Lula e do PT em mais um “partido da ordem” surpreendeu a muitos. No entanto, desde o início da década de 90 o núcleo dirigente do PT se lançou no projeto de chegar ao governo com a chancela da classe dominante (negociando com a direita, com o grande empresariado, com o governo dos EUA, etc.); deformando seus quadros no ethos da “pequena política” (pragmática, oportunista, carreirista, sem nenhum compromisso com transformações sociais profundas, sem estatura sequer para ser reformista).
O governo de Lula trilhou, no fundamental, o mesmo caminho do governo de FHC, dando novo fôlego a um modelo econômico que estava esgotado; perdendo a extraordinária oportunidade criada pela conjuntura internacional entre 2003-2008, que permitia a realização de uma política democrático-radical, anti-imperialista e de transformações econômico-sociais voltada para a elevação do nível de vida das massas populares. Para além da burocratização interna do PT (enquadramento das tendências mais à esquerda pela “Articulação”, destruição dos núcleos de base e virtual eliminação dos espaços democráticos de debate, questionamento e formulação) houve um rápido amálgama espúrio entre governo, partido e os sindicatos e demais organizações de massa (transformadas em “correias de transmissão” do governo). O “patrimonialismo” ultrapassou o clientelismo tradicional na relação do governo com os partidos que compõem a sua base de apoio; renovaram-se as modalidades cooptação político-ideológica, como é o caso emblemático de dirigentes e funcionários do PT e da CUT (e outros setores sindicais governistas) que se tornaram uma camada social específica identificada com interesses de classe burguesa formada por administradores de fundos públicos (especialmente de bancos oficiais, com destaque para o FAT do BNDES) e fundos de pensão estatais (Previ, Petrus, Funcef).
O “modo petista de governar” não é significativamente distinto do PSDB e PMDB; com um pequeno diferencial de eficiência no uso funcional das políticas assistencialistas o lulismo fala para os pobres, vivencia as benesses do poder e garante mesmo a boa vida para os grandes capitais. No essencial a identidade política do PT é a mesma dos partidos da ordem que ocuparam os governos anteriores, passando pelas mesmas equações: financiamento de campanhas pelos grandes capitalistas, nepotismo e ocupação patrimonialista do Estado, relações “fisiológicas” que garantem o atendimento dos interesses de distintas frações das classes dominantes (que repartem entre si o saque representado pela apropriação aberta dos segmentos do aparelho estatal). O capital financeiro controla o Ministério da Fazenda e o Banco Central, determina a política econômica e controla a execução do Orçamento Federal, subordinando as ações do Estado nas demais áreas. O agronegócio e os interesses exportadores apoderaram-se do Ministério da Agricultura e do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior; aprovaram a liberação dos transgênicos, conseguiram compensações para o câmbio valorizado e afetaram inclusive o foco da política externa, principalmente as negociações no âmbito da OMC.
As frações hegemônicas no bloco de poder da formação social brasileira são personificações do capital financeiro (integração orgânica entre o capital bancário e industrial com preponderância do primeiro); dominância da fração imperialista (grandes bancos estrangeiros, fundos de investimento e empresas transnacionais) e os monopólios brasileiros a ela associada (na maior parte dos casos, de modo subordinado). Também importante no bloco dominante são as demais frações do grande capital que não são organicamente financeirizados (na indústria, comércio e serviços) e o latifúndio (em geral modernizado como “agro-negócio”). Estes últimos e os demais segmentos exportadores do grande capital ganharam maior peso no governo Lula do que tinham com FHC (revitalizando o bloco de poder, abalado com a crise cambial de 1999), permitindo (nas condições favoráveis da conjuntura internacional de 2003-2008) tanto os superávits comerciais como o pagamento em dólar dos rendimentos do capital financeiro.
Com a crise as elevadas taxas de juros, a desvalorização do dólar e os gargalos da dívida pública (que exige elevadíssimos superávits fiscais primários) vão aumentar as tensões no bloco dominante (que se mantém unido na defesa do arrocho salarial e da “desregulamentação” do mercado de trabalho). Mais importante: com o reaparecimento da crise o comando do capital financeiro terá dificuldades crescentes para exercer sua hegemonia para além do bloco de poder e incorporar (ainda que passivamente) os grupos e classes exploradas, oprimidas e subalternizadas; pois o capitalismo monopolista dependente (que é o único capitalismo possível no Brasil) não permite um crescimento sustentável capaz de estabilizar tal hegemonia, devido não só ao crédito caro, mas, sobretudo: às perdas internacionais, à reduzida capacidade de investimentos públicos (se mantidas as privatizações, os compromissos de apoio à acumulação de capital e as garantias de pagamento da dívida externa e interna), à forte concentração de renda e patrimônio e às dimensões gigantescas da miséria, degradação coletiva e demandas reprimidas do proletariado e das massas populares.
O PAC foi apresentado como expressão de uma “nova postura”: a primeira gestão teria servido para “arrumar a casa”, para no segundo governo se enfrentar a “retomada do crescimento econômico”. Na realidade, o PAC significou, um “programa de atendimento aos credores” da dívida pública, uma peça de propaganda enganosa do governo e um envoltório do conjunto de sua política a serviço do capital monopolista: não garante o crescimento econômico, está articulado com as contra-reformas, dá continuidade ao desmanche dos serviços públicos e ataca os direitos dos trabalhadores. O PAC nunca chegou perto de ser um verdadeiro plano integrado de desenvolvimento para o Brasil, pois segue a política imposta pelo imperialismo (em conluio com as elites da burguesia nativa) de transformar o país em mera plataforma de valorização financeira internacional. Um verdadeiro plano nacional de desenvolvimento exige, no mínimo, a conquista das da capacidade do país fazer política econômica soberana: reorientação da intervenção do Estado na economia, repúdio do modelo herdado de ditadura que subordina tudo ao pagamento da dívida, redução da vulnerabilidade externa e um planejamento democraticamente centralizado (combinado com a mobilização popular) voltado para a elevação qualitativa do nível de vida do povo.
Protestamos diante da crescente onda de criminalização dos movimentos sociais e do novo patamar de repressão às organizações, protestos e manifestações populares. É um insulto ao povo brasileiro - que conquistou liberdades democráticas em décadas de luta contra a ditadura - o Relatório aprovado por unanimidade no Conselho do Ministério Público do RS, que estigmatiza o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) como “organização criminosa” e promove ação civil pública com vistas à “dissolução do MST e a declaração de sua ilegalidade”, exige a “desativação e remoção dos acampamentos” e ainda a “intervenção nas escolas do MST”. Segue na mesma linha a condenação à prisão por dois anos e meio de Coordenadores da Comissão Pastoral da Terra que assessoraram um protesto de dez mil trabalhadores rurais contra o INCRA na região de Marabá (PA) em 1999. Multiplicam-se casos de criminalização de movimentos legítimos dos trabalhadores e dos pobres, dos jovens e estudantes e, sobretudo, dos trabalhadores do campo e suas lideranças. Estudantes e trabalhadores das Universidades públicas que protestam contra políticas privatizantes e antidemocráticas são processados e enquadrados como “terroristas”; movimentos e organizações populares sofrem espionagem sistemática e crescente violência policial na repressão às suas manifestações; intensificam-se práticas anti-sindicais com demissão de dirigentes (desrespeitado sua estabilidade legal), multas e confisco de patrimônio em caso de greve e uso da legislação anacrônica para golpear a liberdade sindical. Surgem propostas de mudanças na legislação visando proibir e punir a existência legal de associações que lutam pela transformação social. A atávica incapacidade de conviver com a democracia para os “de baixo” que reaparece nas autoridades judiciárias brasileiras, o velho trato da questão social como “caso de polícia”, está se recompondo numa nova e autocrática estratégia das forças conservadoras com forte peso estatal.
A ofensiva da direita se dá num contexto de continuidade da autocracia burguesa. Não se trata de uma rearticulação dos conservadores para “voltar ao poder”, mas de uma ofensiva reacionária para manter e reforçar um poder autocrático que eles nunca perderam. É nesta conjuntura de tentativa de estabilizar a outrora chamada “transição prolongada” – a qual nunca foi mais do que uma reciclagem da autocracia burguesa - que aparece toda a gravidade da conciliação de Lula com a extrema direita e seu recuo diante das pressões para neutralizar os efeitos potencialmente democratizantes do 3º Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH). Apoiamos a campanha “contra a anistia aos torturadores” lançada em dezembro de 2009 pela Associação dos Juízes pela Democracia (AJD) e repudiamos a acusação de que somos movidos por “revanchismo”. Jamais pretendemos fazer a eles o que fizeram a nós. Não reivindicamos que quem assassinou deva ser morto, quem torturou deva ser seviciado, quem estuprou deva ser violentado. Queremos justiça: entregar as famílias os restos mortais dos que foram mortos e enterrados clandestinamente, comprovar que a maioria dos militares não é conivente com as atrocidades; punir os culpados dentro da lei e livrar as Forças Armadas da influência de figuras antidemocráticas que fazem a apologia da ditadura, escondem a verdade e acobertam os criminosos. A ofensiva da direita não pode ser reduzida a uma questão de tática eleitoral, até porque ela se articula também por dentro do Estado e do próprio governo Lula. O que está em jogo é a memória histórica nacional e a luta pela efetiva democratização do Brasil. A impunidade dos torturadores a resistência reacionária contra a concretização de direitos humanos que envolvem limites à interesses particularistas do grande capital e do latifúndio e a defesa da liberdade pessoal e da auto-realização individual (em oposição às forças crescentemente mais destrutivas de desumanização, alienação, opressão e exploração) mostram que a ditadura e a sua lógica ainda estão presentes em nosso país.
Defendemos a realização de uma Reforma Agrária Radical; com o fim da propriedade monopolista da terra na mão dos latifundiários e garantias: de posse da terra por aqueles que nela trabalham, do acesso aos necessários meios de produção e gestão e de condições adequadas de comercialização (que protejam tantos os trabalhadores rurais como os consumidores urbanos da espoliação dos monopólios agro-industriais e comerciais). Lutamos pela renacionalização e reestatização das empresas estratégicas, como: a Petrobrás a Vale do Rio Doce, a Telebrás e a Eletrobrás. Estes complexos produtivos, dotados de elevada competência técnica e organizacional, devem tornar-se a base para um planejamento estatal (com controle democrático) capaz de garantir a soberania sobre nossos recursos naturais e um desenvolvimento socialmente justo e emancipador. Apoiamos a proposta de realização de um plebiscito em favor da retomada do monopólio estatal do Petróleo e da reestatização da Petrobrás; consideramos que ele deve ser estendido a uma campanha pelo monopólio estatal sobre todos os recursos naturais estratégicos e reestatização das empresas estratégicas (a serem nacionalizadas sem indenização e não recomprando as ações privatizadas). O controle democrático dos trabalhadores sobre o planejamento democraticamente centralizado destas empresas (combinado com auto-gestão interna desde a base) é a única solução duradoura para a garantia da soberania nacional a serviço das efetivas transformações sociais necessárias na sociedade brasileira. Medidas neste sentido têm como pré-requisito a derrota política do atual bloco de poder, a liquidação do poder dos monopólios e a destruição do Estado autocrático burguês.